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quinta-feira, 16 de maio de 2013

"Um nevoeiro na cabeça"

Félicité, a criada da deprimida  Emma Bovary, tenta consolá-la dando-lhe o exemplo da filha do pescador,  que também andava tão triste que os médicos diziam que tinha um nevoeiro na cabeça. Bem, o remédio da filha do pescador foi o casamento, mas, como sabemos via Flaubert, essa não poderia ser  a terapia de Emma.
A depressão de Emma parece  a milhas das depressões ordinárias que  hoje nos caem na consulta. R., 34 anos, dois filhos, apareceu-me certa vez a pedir ajuda. Operária, tinha ( e tem) o marido emigrado à força em Angola. O clínico geral disse-lhe que estava deprimida e medicou-a. Estava  e não estava.
R. trabalha numa fábrica ( que até está bem), cuida dos terrenos e do gado ( em muitas zonas do país, gado pode significar apenas galinhas) e tem de fazer de pai e mãe, para além de não ter, como é óbvio, empregada doméstica ( uma senhora que vem ajudar, nas imorredoiras palavras de Francisco Louçã). Estava estoirada e esse estoiro deprimiu-a. O nevoeiro na cabeça  não vinha tanto do cansaço, mas  sobretudo da auto-exigência: R, achava que devia aguentar.
O ponto de contacto entre Emma e  R. é este: para o que fomos feitos? No caso de R., a crise levou-lhe o marido para longe, de sopetão, e ela  desconfiou de que talvez não estivesse à altura da situação. A capacidade de ajustarmos  as nossas expectativas às nossas capacidades é sempre trabalho forçado, mas a crise, interrompendo planos, logo,  o ajuste gradual, transformou-o numa tarefa de bestas.

4 comentários:

  1. A minha querida mulher, tirando a depressão e o gado, está numa espécie de fase R, mesmo com todo o meu apoio e presença. Duas filhas. Muito trabalho doméstico e extra-doméstico. Pouquíssimo dinheiro.

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  2. Lendo-o, Filipe, pode deduzir-se que, com os mutatis mutandis que forem necessários e adequados, um estado depressivo é sempre um estado depressivo, há uma matriz comum? Pode um Psi ler um texto medieval em que o autor relate, com pormenor, estados de alma e mágoas diversas e fazer-lhe um diagnóstico tão preciso como se o fizesse a um paciente deitado aí no seu divã? Lembro-me de uma tia minha, que não era Psi, que, ao ouvir dizer que X estava deprimida, perguntou dos sintomas. Depois disse. "Ah, sempre houve disso. Mas não se dizia deprimida, dizia-se cismada."

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    1. Pano para mangas, de facto. Lá iremos. No tempo do meu pai ( era psquiatra e neurologista) dizia-se cismática e anacástica, que vai no seu sentido.
      Há um texto medieval desses e é um livro permanente para mim: Remédios, do Petrarca.

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